Quando o Serviço Público Adoece
Nos últimos tempos, tenho assistido a algo que me inquieta profundamente: uma erosão silenciosa, quase imperceptível, mas devastadora, a corrupção entranhada no sector público, sobretudo na área da saúde. Não falo de rumores soltos ao vento, mas das alegações trazidas a lume por investigações jornalísticas, como a que recentemente expôs o que se passava no Hospital de Santa Maria.
Vi, com perplexidade, as notícias que relatam que um dermatologista, Miguel Alpalhão, o cirurgião e, segundo as reportagens, também codificador do serviço onde trabalhava, poderá ter manipulado codificações cirúrgicas para transformar atos simples em procedimentos pagos a peso de ouro. Dizem os números avançados pela comunicação social: cerca de 700 mil euros de prejuízo para o Estado e ganhos diários superiores a cinquenta mil euros em apenas dez dias. Alega ainda a reportagem que cirurgias de poucos minutos, inclusive realizadas aos seus próprios pais, teriam sido registadas como operações complexas e tratadas como SIGIC.
“O carácter de um homem é aquilo que ele faz quando ninguém está a olhar”, escreveu certa vez o filósofo inglês Heráclito, e nunca esta frase pareceu tão atual.
A investigação jornalística menciona ainda que pelo menos cinco enfermeiras teriam lucrado acima dos onze mil euros por dia, somando mais de 300 mil euros, tudo através do mesmo alegado esquema. E eu pergunto-me, quase em desespero: como se chega aqui? Que fratura moral, que abandono ético, permite que num serviço público, sustentado por impostos de todos nós, se transforme a saúde em mina de ouro para alguns poucos?“O preço da grandeza é a responsabilidade”, dizia Winston Churchill. Mas o que acontece quando a responsabilidade se evapora, deixando apenas a sede de benefício próprio?
E agora? Quais serão as consequências? Prisão? Devolução dos valores recebidos? Sanções disciplinares, expulsão da Função Pública, proibição de exercer no sistema nacional de saúde? O que nos resta enquanto cidadãos, senão esperar que a justiça fale, e que fale alto? Porque a sociedade que fecha os olhos ao abuso acaba por ser cúmplice dele.
Escrevo isto não em tom de moralista, mas como alguém que acredita, com teimosia quase ingénua, que o serviço público deve ser lugar de vocação, de entrega, de humanidade. Assistir a estas alegações dói. Dói porque traem a confiança de um país que, apesar de tudo, ainda acredita no valor da palavra serviço.
“A corrupção, como a peste, começa sempre por passar despercebida”, escreveu Camus. Talvez agora, exposta à luz, reste-nos decidir quem queremos ser: um povo que se conforma ou um povo que exige verdade, justiça e dignidade nos lugares onde mais precisa delas.
O tempo dirá. E nós estaremos a ver.


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